Destaques Arquivo MPR #26
Não é nada óbvio encontrar no Arquivo dos Presidentes – MPR um cartão-de-visita de Tommaso Cannizzaro (1838-1921), figura da literatura italiana que viveu a maior parte da vida no século XIX. Os arquivos são mesmo uma fonte inimaginável de informação! O curioso é que há mais documentos deste siciliano: poeta, tradutor, crítico literário e lusófilo (amigo da cultura portuguesa).
É através do Presidente Teófilo Braga que nos chega esta documentação e percebe-se a razão – a literatura. Quando foi Presidente da República, no curto período entre maio e outubro de 1915, Teófilo tinha já décadas de trabalho como poeta, investigador, ensaísta, professor. Tinha também alimentado uma grande teia de relações nacionais e internacionais.
No fim do século XIX, generalizou-se o estudo das línguas, numa ampla perspetiva linguística, etnográfica e histórica. Este interesse nacional espoletou também um olhar para fora, abrindo campo a uma troca muito rica entre pares de diferentes países. Compreende-se, pois, que no arquivo de Teófilo Braga se encontre correspondência, além de Canizzaro, também de Edgar Prestage, Maxime Formont, Goran Björkmann e Wilhelm Storck, tradutores, estudiosos, divulgadores da cultura portuguesa nos seus países, verdadeiros lusófilos.
Esta tendência – a que hoje chamaríamos multicultural – concretizou-se em inúmeras traduções, artigos, edições coletivas e poliglotas.
Foi neste contexto que Tommaso Cannizzaro pediu a Teófilo Braga que participasse numa antologia sobre o amor, a editar em língua italiana. Saiu em cinco volumes Il libro dell’ amore: [recolha de poesia italiana e estrangeira traduzida por Marco Antonio Canini], editados entre 1885 e 1890, com poemas traduzidos de 164 línguas e dialetos. Além de Teófilo, reuniu versos de Camões, Bocage, Antero de Quental, João de Deus, Bulhão Pato, entre outros.
No mesmo espírito se publicou, em 1894, o poema Zara[1], à maneira de epitáfio, escrito por Antero de Quental. Dedicou-o ao amigo Joaquim de Araújo – outra figura deste circuito intelectual –, poucos dias depois da jovem irmã ter falecido. Do português, foi traduzido para cerca de 80 línguas e dialetos, e Cannizzaro assinou a tradução de duas versões do italiano, do siciliano e do francês.
No cartão pessoal que aqui destacamos, com a morada de Tommaso Cannizzaro – Bocetta, Villa Landi –, na cidade de Messina, na Sicília, lê-se: «auguri», escrito à mão. Associando a cartões-de-visita de outras pessoas, alguns com data, percebe-se que terá sido enviado pelo aniversário de Teófilo Braga, em fevereiro. «Auguri» significa felicidades, boa sorte, mas também feliz aniversário; em italiano «parabéns a você» canta-se «tanti auguri a te».
Os originais do arquivo do Presidente Teófilo Braga conservam-se na Biblioteca e Arquivo Regional de Ponta Delgada. Fruto de um acordo, o Museu da Presidência reproduziu toda a documentação, possibilitando que ambas as instituições a disponibilizem atualmente em linha.
Tommaso Cannizzaro é hoje uma figura da cultura nacional italiana e europeia. Há poucos anos, a Universidade de Messina e o Instituto de Estudos de Literatura e Tradição da Universidade Nova de Lisboa organizaram uma jornada de estudos intitulada: «Tommaso Cannizzaro – Voce messinese Voce europea», sinal do interesse científico que a sua obra continua a merecer, da mesma maneira que a obra de Teófilo Braga.
* Os documentos originais integram o acervo da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada.
[1] Consultámos uma edição recente: Antero de Quental - Zara, edição poliglota. Organização, introdução e notas de Andrea Ragusa. Lisboa: Edições Saguão, 2022.