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No dia 27 de fevereiro de 1911, Bernardo de Magalhães envia de Freixo-de-Espada-à-Cinta um bilhete-postal à sua mulher, Albertina Magalhães, que se encontrava no Porto (Foz do Douro). Não sabemos quem era este casal, nem os motivos da sua separação física, mas as parcas palavras de Bernardo, assim como a ilustração na frente do postal, dizem-nos muito sobre o que se passava em Portugal no primeiro ano da década de 1910.
A escolha de um bilhete-postal – ou carte postal, como se dizia à época, por influência francesa –, é, no imediato, testemunho de uma época que se prolongará até aos anos de 1920, apelidada pelos estudiosos do tema como «época de ouro do bilhete-postal». Dispensando o sobrescrito, com espaço reduzido para escrever e colar o selo, e apresentando na frente uma ilustração ou uma fotografia, era o meio ideal para enviar notícias breves. A fotografia era muitas vezes a do local onde o emissor estava (uma paisagem, um monumento) e funcionaria como a fotografia que enviamos hoje por telemóvel, como que a dizer: «— Olá, estou aqui!». A ilustração podia ter muitas inspirações: um motivo popular, uma caricatura, um tema da época, um desenho, etc.
Desconhecemos a razão que levou Bernardo de Magalhães a escolher um bilhete-postal com uma sátira sobre a nova bandeira nacional para enviar notícias à sua mulher. Assinale-se a completa ausência de referência a tal ilustração no texto que escreve: nem uma palavra sobre os dois indivíduos que se digladiam, segurando cada um deles uma bandeira. Essa omissão pode dizer-nos que utilizou o postal que estava disponível, que pode ter sido um acaso e não uma escolha, mas não deixa, ainda assim, de nos informar sobre o que circulava de propaganda política no país. Os dois selos de 5 réis com a efígie do Rei D. Manuel II lembram-nos que, à data, a nova unidade monetária não tinha ainda sido aprovada (o escudo surgiu em maio de 1911), e que, até à emissão da primeira série de selos republicanos (fevereiro de 1912), continuaram a circular os selos da Monarquia, mas com sobrecarga «República». Efetivamente, no início de 1911 – data deste postal –, o tema da bandeira nacional estava na ordem do dia, um pouco por todo o país.
A imagem representa os dois principais protagonistas do debate que dividiu o país entre novembro de 1910 (data de aprovação da nova bandeira pelo Governo Provisório da República) e junho de 1911 (publicação do respetivo decreto no Diário do Governo). À esquerda, vestido de azul e banco, segurando uma bandeira que propunha a manutenção dessas cores, o poeta Guerra Junqueiro; à direita, vestido de verde e vermelho (rubro ou escarlate, como então também se dizia), segurando a bandeira aprovada pelo novo regime, Teófilo Braga, o Presidente do Governo Provisório. O título diz-nos tratar-se de uma luta entre a tradição, identificada com o azul e branco, e a revolução, representada pelas cores da nova bandeira.
A caricatura é do artista Silva e Sousa e foi publicada pela primeira vez a 29 de novembro de 1910 no jornal satírico «O Zé». Os dois adversários vestem calções (naquela época, uma indumentária típica dos rapazes), o que equivalia a dizer que as personagens estavam envolvidas numa zanga de miúdos. Uma legenda acentuava essa crítica: «— Ó meninos, vejam lá em que ficam; olhem que o Zé está à espera…».
A «querela da bandeira» – como ficou conhecida a discussão que opôs várias individualidades –, acabaria por se prolongar durante bastante tempo, e seria preciso esperar até aos anos da I Guerra Mundial (1914-1918), e ao pós-guerra, para que a bandeira verde-rubra fosse unanimemente aceite como símbolo nacional. Até lá, muita tinta correria.
ESA