Há cem anos, o Presidente da República era Manuel Teixeira Gomes (1860-1941). Natural de Portimão (à época, Vila Nova de Portimão), era herdeiro de um próspero negócio de exportação de frutos secos. Esteve em Coimbra, na Universidade, onde o Curso de Medicina o desiludiu, viveu em Lisboa e no Porto, sempre convivendo com a boémia literária e artística e alguns dos ideólogos do republicanismo. Iniciou-se na escrita em jornais e revistas da Cidade Invicta e, em 1899, publicou o primeiro livro (Inventário de Junho). O negócio de família levou-o a viajar pelo mundo: Europa, Norte de África, Mediterrâneo. Visitou e encantou-se com museus, monumentos e galerias de Arte. Durante as muitas viagens que fez, foi adquirindo peças, muitas delas de indiscutível valor, onde o denominador comum era a procura do belo. Fossem peças da Antiguidade Clássica, do Renascimento ou objetos orientais (da China e do Japão), Teixeira Gomes foi constituindo uma verdadeira e heterogénea coleção de arte.
A sua nomeação, em 1911, para representante diplomático de Portugal em Londres, acabaria por levá-lo a dedicar-se um pouco mais a esse prazer que adquirira nas viagens: colecionar objetos de arte. Quando chegou à capital londrina, substituindo no cargo o marquês de Soveral, a Legação de Portugal estava despojado do seu recheio. Seguindo a rígida ética republicana, Manuel Teixeira Gomes mobilou e decorou a expensas próprias todo o interior do edifício, de acordo com o seu refinado gosto. Móveis e objetos de caráter utilitário (camas, tapetes, secretárias, candeeiros, etc.) e peças decorativas, tudo foi criteriosamente escolhido por si. Frequentou leilões, estabeleceu contactos com antiquários e prestigiadas lojas – como a distinta Maples & Company, que em Portugal viria a ser sinónimo de um tipo específico de sofá –, que lhe fazia chegar catálogos que anotava profusamente.
Durante os muitos (quase dez) anos que viveu em Londres, Manuel Teixeira Gomes – que falava fluentemente inglês – privou com a alta sociedade inglesa, tendo ganhado a confiança do Foreign Office (o Ministério dos Negócios Estrangeiros inglês) e a simpatia da família real. Em 1923, pouco tempo antes de deixar Inglaterra, foi convidado pelo Rei Jorge V para passar dois dias no Castelo de Balmoral.
O representante de Portugal tornara-se conhecido pelas suas capacidades como diplomata, mas também pela sua sólida e eclética cultura, gosto refinado e coleção de arte exposta a todos quantos entravam na Legação portuguesa. De acordo com Norberto Lopes, a Rainha Alexandra[i], mãe do Rei Jorge V, terá pedido a Teixeira Gomes que dirigisse a decoração de uma das salas do Palácio de Buckingham, «o que fez morder de inveja os melhores decoradores e antiquários de Londres, que nunca tinham conseguido transpor os umbrais desse misterioso santuário.»[ii]
A sua vasta coleção de arte foi sendo dispersa pelas casas que foi habitando, mas também, a partir de certa altura, e por vontade do próprio, por vários museus portugueses (Museu Nacional Soares dos Reis, Museu Nacional Machado Castro, Museu Nacional de Arte Antiga, Museu de Lisboa, Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado), onde hoje é possível admirar algumas das peças que Teixeira Gomes adquiriu. Também no Museu da Presidência da República, visitando o Palácio da Cidadela de Cascais, é possível ver algumas peças da sua coleção, uma delas pertença da família.
Em 1923, deixou Londres após ter sido eleito pelo Congresso para a Presidência da República[iii]. Chegou a Lisboa num navio inglês posto ao seu serviço pela Coroa britânica, instalando-se no Palácio de Belém enquanto ocupou o cargo. Mais tarde, o mordomo do palácio, Vital Fontes, dirá do Presidente Manuel Teixeira Gomes: «Era muito correto, muito elegante, parecia um príncipe árabe vestido em Londres.»[iv]
Decorriam dois anos da sua eleição, em 1925, quando o «príncipe árabe» desistiu da política e de Portugal: apresentou a demissão e embarcou no cargueiro Zeus rumo ao exílio voluntário donde não regressaria. Em 1939, o jornalista Norberto Lopes visitou-o em Bugia (Argélia), no Hotel I'Étoile onde vivia, e recolheu dele um longo testemunho. Disse, então:
«Saí de Portugal sem um livro, sem um papel, sem um apontamento ou nota; […] abri na vida uma página perfeitamente em branco. […] os museus, as igrejas, os monumentos, abrem-se-me como outras tantas portas para o paraíso; o espectáculo das ruas nunca me embasbacou e surpreendeu como agora; olho para o céu, para o mar, para as montanhas, para a paisagem, com a encantada curiosidade de um ressuscitado […]»[v]
ESA
[i] Alexandra da Dinamarca (1844-1925), mulher do Rei Eduardo VII (1841-1910), mãe do Rei Jorge V (1865-1936).
[ii] Norberto Lopes, O exilado de Bougie, p. 88.
[iii] União da Câmara dos Deputados e do Senado, onde se elegia o Presidente da República, entre 1911 e 1925.
[iv] Vital Fontes. Servidor de Reis e de Presidentes. Da Monarquia à República. Do Sr. D. Luís ao Sr. General Carmona, Lisboa, INCM/Museu da Presidência da República, p. 120.
[v] Teixeira Gomes citado por Norberto Lopes in op. cit., pág. 211.