O ano de 1559 é um marco na história do Palácio de Belém. Sabemos que foi no dia 11 de setembro desse ano que o fidalgo e poeta D. Manuel de Portugal aforou aos frades jerónimos as terras que correspondem hoje, aproximadamente, à área ocupada pela residência oficial do Presidente da República.
Na verdade, não comprou a propriedade, pois passou a pagar uma renda – ou foro – aos frades, mas adquiriu o direito de a usar, cultivar, construir e legar em herança aos seus sucessores. E foi o que fez D. Manuel no seu Outeiro – que significa pequena colina ou monte – ou Outeiro das Vinhas, como era chamada a propriedade.
Assim nasceu a casa nobre, o primeiro palácio, rodeado de jardins e terras agrícolas. Poucas evidências plausíveis desta primeira construção chegaram aos dias de hoje: duas portas e duas janelas com moldura de pedra trabalhada à maneira do século XVI; a forma das três maiores salas – Dourada, Império e Embaixadores; a implantação da fachada principal virada a sul, para o Tejo. Chegaram também memórias ligadas à vida pessoal de D. Manuel de Portugal.
Belém era uma zona de bons ares, belas vistas sobre o rio, nessa altura muito mais próximo das casas. Tornara-se um local importante com a construção do Mosteiro de Santa Maria de Belém, para os frades da Ordem de São Jerónimo, e com a sua consagração como panteão real, por vontade do Rei D. Manuel I.
Não admira que Belém tenha agradado ao nobre e poeta para construir aqui a sua morada. Filho dos condes de Vimioso, terá nascido em Évora por volta de 1520, e descendia do Rei D. João I. Seu pai, D. Francisco de Portugal, foi camareiro-mor do príncipe D. João e o Rei concedeu aos filhos «mercê de entrada nos seus aposentos», o que significa pertencer à primeira nobreza do reino. A confiança régia do sucessor, D. Sebastião, e o prestígio fizeram D. Manuel de Portugal embaixador em Castela.
Casou duas vezes. Primeiro com D. Maria de Meneses, irmã do senhor de Aveiras (na descendência, serão condes), de quem teve quatro filhos: dois deles combateram em Alcácer Quibir com D. Sebastião. Viúvo, D. Manuel de Portugal casou-se uma segunda vez, com D. Margarida de Mendonça Côrte-Real, nascendo uma quinta filha, a herdeira do Outeiro – D. Joana de Mendonça Côrte-Real.
Os biógrafos não são consensuais no que respeita à posição da família frente às pretensões de Castela, mas sabe-se que foi excluída de um perdão geral concedido por Filipe II de Espanha. À cabeça dos excluídos, surgiam os nomes de D. Manuel e do irmão, D. João, bispo da Guarda.[1]
Como aconteceu com a maioria das grandes famílias da nobreza portuguesa, depois de 1580 acabaram por aceitar um Rei de Espanha, vencidas ou convencidas…
Talvez a faceta mais original de D. Manuel de Portugal tenha sido a veia poética. Se o seu círculo foi o da nobreza de corte, foi também o da cultura e dos poetas, logo no meio familiar – o pai, o conde de Vimioso, mas também o cunhado, Jerónimo Côrte-Real. Mas outros, dos mais conhecidos, como Luís de Camões, Francisco Sá de Miranda, Pedro de Andrade Caminha ou André Falcão de Resende, dedicaram-lhe versos e enalteceram os seus dotes literários.
O amor profano e o amor divino foram as suas grandes inspirações, cantadas no «culto verso», à maneira italiana do Renascimento, na forma e nos temas. O seu Outeiro, a sua casa, em Belém, certamente que terá sido o espaço privilegiado da criação literária. Os poemas do amor profano nunca foram impressos, ficaram registados em cancioneiros manuscritos (coleções de vários autores), o que não era invulgar, na época.
Já a poesia de sensibilidade religiosa, mística, D. Manuel publicou-a em 1605, um ano antes de morrer.
O pendor espiritual e contemplativo acompanhou-o sempre. Logo em 1556, financiou a construção de um pequeno convento em Vale de Figueira, Santarém, para os Franciscanos Arrábidos. Em 1574, escreveu um «Tratado da Oração» (recentemente reeditado). Na sua casa nobre de Belém, havia um oratório – ou capela –, onde se casou, por exemplo, a quinta filha, Joana com o seu primo-direito, Nuno Álvares de Portugal.
D. Manuel morreu com mais de 80 anos, no dia 26 de fevereiro de 1606, em Lisboa. Com a sua cultura, erudição e estatuto social, é verosímil pensar que a sua casa em Belém seria muito requintada, rodeada de jardins igualmente cuidados, preenchidos com alecrim, boninas, ciprestes, cravos, laranjeiras, limoeiros, loendros, loureiros, madressilva, murta, rosas, viburnos.
[1] Luís F. de Sá Fardilha «Poesia de D. Manoel de Portugal». Revista da Faculdade de Letras. Porto: Instituto de Cultura Portuguesa; Faculdade de Letras do Porto, 1991.